sexta-feira, 20 de maio de 2011

Na Masmorra

Ele acordou com o choro dela.
- Por que choras menina?
Ela estava agachada no chão da cela, encoberta de palha, encolhida e tremendo, provavelmente de frio.
- Me acusam de algo que não fiz. - ela disse
 Ele olhou suas próprias mãos sujas de sangue. Disse:
- Sei como se sente. Mas do que a acusam?
Ela pareceu desconfortável com a pergunta.
- Ora menina, que mal faria em me responder? Seria presa? Olhe sua situação...
Ela se virou pra ele. Era uma linda menina. Não mais que dezesseis anos, olhos cor de mel. Tinha o rosto marcado de tanto apanhar, de tanto ser torturada. De tanto ser obrigada a assumir algo que não era.
- Me acusam de bruxa.
O homem não ficou espantado.
- E você é bruxa?
Os olhos de mel ficaram furiosos.
- De maneira nenhuma! É uma acusação falsa, sem fundamento. Não sou uma bruxa! - estava à beira das lágrimas novamente.
- Não a acusariam por nada. - o homem estava implacável.
A menina se endireitou, encheu a mão de palha, e começou a solta-las ao chão novamente. Uma atitude sem pensar. Disse:
- No meu caso sim. Não fiz nada além confidenciar sonhos à pessoa errada. Mas eram somente sonhos, eu juro! Sonhos que, aposto, qualquer pessoa poderia te-los.
O homem sentiu dó da pequena garota. Ele sabia o que lhe era reservado, ela também...

Fogo.

Ela o olhou novamente, com um olhar curioso como somente as crianças sabem fazer
- E o senhor, o que fez para estar aqui nas masmorras, preso por correntes de elos tão grandes?
O homem olhou as correntes. Não tinha reparado no tamanhos dos elos. De repente elas ficaram pesadas como o céu.
- Acusado de assassino.
- E o senhor é assassino? - a garota foi rápida.
- De um modo ou de outro, sou.
- E quem o senhor assassinou? - ela também sabia ser implacável e direta, como um tapa de costa da mão.
Ele olhou pela fresta e viu a lua. Prata sobre prata, perfeita circunferência. Linda.
- Um padre. - ele disse sem remorso.
A garota ficou espantada. Olhou de um outro modo ao homem. Com uma pitada de medo e curiosidade.
- Por que matar um servo de Deus?
Uma ira se ascendeu nos olhos do homem maltrapilho.
- Porque ele merecia a morte. Dolorosa, demorada e muito sofrida. Sim, ele merecia, minha criança. Abri-lhe o estômago e deixei suas tripas escorrerem pra fora. Tirei-lhe as bolas e dei-as aos porcos. E os dedos, tirei um por um, e fiz um colar.
A crueldade do assassinato chocou a menina criança. Ela só conseguiu dizer:
- O senhor é que deveria ser acusado de bruxaria.
Ela foi para o canto mais distante da cela, longe do homem. Agachou-se e se pôs a jogar palha ao acaso.
O homem gostou de ter chocado a garota. Gostava da lembrança do crime. Parecia sentir o gosto do sangue do padre novamente. Por fim se encostou na parede novamente, adormeceu.

Mais tarde ele foi acordado por gritos. Gritos da menina. Porém não vinha da cela, vinham de fora. Ela gritava ser inocente. Que era uma injustiça. Que Deus os faria pagar. Um padre esbravejava, Eu sou Deus aqui criança-bruxa. Sou a voz dEle e Sua mão. Arrependa-se da bruxaria e Ele talvez lhe salve a alma. Porém o corpo não tem salvação.
O homem olhou pela fresta. O dia ainda não havia raiado, mas havia uma intensa claridade. Fogo.
Eles arrastaram-na até a pira. O fogo ardia até na cela, fazendo o maltrapilho ser aquecido. Decidiu que não queria ver o resto. Sabia muito bem o que ia acontecer.
O homem ouviu os gritos da menina, abafados pelo barulho que o fogo faz quando queima. Os gritos. Cortaram-lhe a alma. Uma menina morrendo, em nome do homem que dizia ser a voz de Deus. Em nome da Igreja, que dizia ser a verdade de Deus. Em nome da mentira!
O homem resolveu ser surdo aos gritos. Ele sabia o que lhe esperava. Sabia que logo a sua pira estaria ardendo, esperando para consumir seu corpo.
Pois essa é a condenação aos desertores assassinos como ele.

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